Nascido em Porto Alegre, Caco Barcellos é um dos maiores repórteres investigativos brasileiros em atividade. Conhecido internacionalmente, já cobriu guerras, denunciou atos de brutalidade da polícia e registrou atividades dos principais comandos do tráfico de droga espalhados pelas favelas cariocas. Escritor premiado com seus livros de sucesso “Rota 66” e “Abusado” e atualmente na Rede Globo de Televisão com o consagrado programa documental “Profissão Repórter”, Caco Barcellos será um dos palestrantes convidados para o boas-vindas do semestre 2020.2 da Rede UniFTC.

Ele conversou com a jornalista Rafaela Anunciação, que integra a equipe de comunicação da UniFTC, sobre a importância da atuação do repórter para a sociedade, as vantagens e desvantagens do uso das novas tecnologias, entre outros assuntos. Confira esse bate-papo com exclusividade.

 

Rafaela Anunciação (RA): Você é uma referência na área da comunicação, tanto para os estudantes quanto para os profissionais da área de comunicação. Na sua palestra, você falará justamente sobre os cases de sucesso da sua carreira no jornalismo. O que nossos estudantes podem esperar desse momento?

Caco Barcellos (CB): Eu pretendo dar um depoimento de como tem sido a minha carreira, mas sobretudo, com uma expectativa de tentar convencê-los de que a gente precisa muito de aliados como novos repórteres, novos jornalistas. Precisamos de parceiros que levem essa profissão à sério. E, além disso, em um país como o nosso, com tanta dificuldade, diferença, desigualdade, precisamos ter um propósito que seja muito maior do que somente a nossa trajetória pessoal ou a profissional bem-sucedida que todos desejam. Junto desse sonho, é necessário que haja um propósito maior que tem a ver com a vida do outro e não apenas com a nossa vida. Essa é uma profissão que combina muito mais com a ciência de cidadania do que com a consciência da sua necessidade de ser bem-sucedido. É legal ser bem-sucedido para realizar os seus sonhos, até mesmo suas ambições, mas se torna muito mais interessante, mais vibrante, quando o propósito envolve os outros… o vizinho, a sociedade, o país. Então, que propósito é necessário buscarmos juntos? No nosso caso, vou tentar convencê-los de que o país vive num processo de transformação desde sempre, são cinco séculos e vinte anos… Nesse tempo secular, nestes 5 séculos, a gente construiu uma sociedade muito desigual, a diferença é gritante, dependendo da classe social que você estiver. Eu imagino que os jovens, como são mais idealistas que todos, desejem uma vida mais harmônica, mais equilibrada, de mais amor nas relações, do que relações desarmoniosas. Acho que a gente vive em uma sociedade que nos joga, no dia a dia, grandes exemplos de desarmonia. Um desses exemplos é a violência. É inadmissível que em um país tão bacana como o nosso, com um povo tão legal, tão receptivo, solidário e aparentemente feliz, seja também tão violento! Estamos entre os 5 povos mais violentos do mundo, precisamos mudar isso… não me parece que seja da nossa natureza essa raiz violenta, mas ela praticamente tomou conta de todo mundo. A gente precisa reforçar bastante os nossos valores éticos, mas mais que os valores éticos, associando com essa temática, devemos reforçar os valores religiosos. Nós somos um país religioso, um país católico, um país evangélico. Há uma polarização hoje entre evangélicos e católicos, mas estas duas religiões tem como premissa base o respeito à vida! É um pecado muito grave matar… e a gente pratica isso demais, só para dar um exemplo de como temos desafios pela frente. E é um desafio que tem que ser incorporado não somente com as gerações que estão aí. Eu considero a minha geração e tantas outras, já que sou bem maduro, relativamente fracassada com relação à construção de uma sociedade mais justa, mais humana… Fracassamos nisso e precisamos dos jovens com a sua energia, com o seu idealismo, para construir uma sociedade melhor. Eu sei que seria pretensioso demais achar que o comunicador tem o potencial de transformação, mas a gente tem que contribuir minimamente para isso. Mesmo que a contribuição seja singela, tem que ser integral, tem que ser autêntica. No nosso cotidiano de trabalho, ter o empenho absoluto, como se a gente fosse capaz de ter o poder de transformação. A minha expectativa, em oportunidades como essa, é de convencer uma só pessoa que seja a ser esse parceiro, a ser um aliado na busca de uma construção de uma sociedade mais harmônica mais, mais amorosa, sobretudo menos violenta nesse momento e mais justa. É legal uma sociedade justa, mas eu acho que se você é solidário demais em uma sociedade é porque está faltando justiça; se a sociedade for mais justa, não precisa ser solidário; se você é bacana o ano inteiro, não precisa presentear só no Natal dizendo ‘sou bacaninha’. Eu pretendo aproveitar essa oportunidade para termos uma conversa assim, uma proposta com essa natureza, além de trazer para o cotidiano explicando como é que no trabalho a gente coloca esse propósito. Costumo dar muitos exemplos desde o momento que eu acordo, eu tenho isso na cabeça, os jovens que trabalham conosco têm em comum este mesmo propósito. A gente pouco faz uma reunião, mas está a todo tempo reunido sempre conversando, trocando ideias… o que a gente vai abordar hoje? Como a sociedade está se comportando? Quem a gente vai conhecer? Que lugar a gente vai visitar? Em um país tão desigual é fundamental fazer essas perguntas porque você pode ir para um lugar onde está concentrada 0,5% da sociedade brasileira que vive num paraíso, como se estivesse na Suíça, mas tem ali histórias maravilhosas de gente próspera e bem-sucedida, mas se você não pensar muito, é fácil chegar em outros lugares, não na Suíça, mas chegar também na Etiópia brasileira, onde está concentrada a maior parte das pessoas. A ideia será essa, comparar a realidade desse 1% da sociedade e quando a gente vai para os 80% é outro universo. Então essas reflexões são necessárias diante dessa enorme desigualdade de realidade das famílias brasileiras.

 

RA: Na área da comunicação já tínhamos notado um aumento significativo no uso dos recursos digitais, mas com a chegada da pandemia esse uso aumentou bastante por conta dos trabalhos home office e até por termos mais tempo de explorá-los. Como você enxerga essas possibilidades tanto para quem acaba de ingressar na faculdade quanto para quem já é profissional e está no ramo se reinventando?

CB: Eu acho que é uma oportunidade fascinante! Eu nunca imaginaria que pudesse viver uma realidade como essa, da revolução digital que trouxe equipamentos que eu nunca imaginaria. Como repórter de investigação como eu sou, como fui, ter algo tão pequenininho como essa câmera, que estamos aqui falando ao vivo, nunca imaginei que isso fosse possível. Você poderia estar lá em Beirute, pertinho daquela explosão, e chegar várias imagens primeiro, antes da gente saber do que estava acontecendo. Eu sou de um tempo onde, na cobertura de uma guerra, os fatos você só ficaria sabendo três meses depois dos primeiros tiros, das primeiras mortes. Que tempo era esse, entre o primeiro tiro e o conhecimento daquele tiro? Era o tempo que demorava o deslocamento de um repórter até o front. Hoje, antes de cair a bomba no Iraque, as câmeras ao vivo já estavam lá esperando a bomba. Então, as primeiras tragédias por consequência da bomba, já estavam sendo registradas sem o relato do repórter. Israel, por exemplo, estava usando até um repórter robô para chegar mais perto do front, assim como usa no conflito com os palestinos; eles vão e atiram nos palestinos às vezes com robô! Tem drone que atira do alto; no Rio de Janeiro tem isto também, um drone que mata lá de cima. Antes eram os helicópteros, pelo menos tinha ali uma pessoa pilotando, agora nem isso! É uma transformação brutal. Tem um lado disso que eu considero muito preocupante; eu quero falar das coisas positivas primeiro. Quais são as coisas positivas? A possibilidade de você ter tecnologia para melhorar a sua apuração. Eu lembro que eu subia as favelas, percorria as áreas onde estão concentradas as famílias brasileiras mais comuns, onde está concentrada a maioria… em favela, periferia, cortiço… é um ambiente do nosso cotidiano. Eu chegava nas favelas gritando, quando me chamavam, quando eu ficava sabendo de alguma injustiça que acontecia na favela eu entrava gritando: ‘estou aqui querendo saber o que aconteceu! Quem pode me falar o que aconteceu aqui nessa comunidade? Se quiser eu gravo a entrevista, se não quiser eu também não gravo, mas eu preciso saber’, eu entrava gritando! Hoje o meu grito é diferente: ‘quem filmou? Quem fotografou? Quem gravou? É verdade que aconteceu isso aqui? Eu quero a prova disso!’, e eles correm com essa maravilha que é o celular, já trazendo relatos das execuções que acontecem com frequência nas favelas. Qualquer cena de injustiça está lá, eu não preciso apenas confiar na palavra dada. Além da palavra, tem a prova! É essa revolução que trouxe este tipo de instrumento que ajuda a qualificar o nosso trabalho. Outra coisa que trouxe junto, foi a concorrência. Este indivíduo que filmou, digamos uma execução que é tão comum – são cinco por dia no Rio de Janeiro – ele pode por conta própria, ter na casa dele um blog, um site, uma mini estação de TV, uma emissora de rádio… ele pode chegar lá e narrar o que está acontecendo; isso é maravilhoso! Por que cada cidadão é potencialmente um repórter. Como eu sou muito apaixonada pela profissão, que bom que tem tanta gente reportando, agora o lado negativo, é que muita gente usa essa tecnologia maravilhosa não para reportar, mas para opinar, aí o bicho pega, e é um problema. Eu acho que a sociedade corre um sério risco de sofrer influência de pessoas que não tem o menor compromisso com a verdade. Tem toda a tecnologia do mundo para mostrar a verdade, mas prefere opinar sem ter a informação que fundamente a sua opinião. A gente começaria a conversar do gênero do jornalismo chamado reportagem, muita gente confunde. O jornalismo tem hoje uma ampla possibilidade de atividades, mas as pessoas confundem o comunicador com o repórter, acham que está todo mundo no mesmo patamar e as coisas são diferentes. Eu queria, durante a palestra, mostrar alguns exemplos do que é a reportagem e o que é a comunicação, apenas. O que é comunicação com opinião, com ausência de reportagem e qual a consequência disso para a expectativa da sociedade se transformar em uma sociedade bem formada? De que maneira você pode bem informar, ou de que maneira você pode passar noite e dia falando e opinando sem parar, e só causar dano à formação da opinião pública? Isso pode ser pra mim uma oportunidade muito interessante de conversar com os alunos sobre o assunto, as diferenças de gênero dessa profissão. Eu falo isso com expectativa de ganhar mais repórteres (risos).

 

RA: O que seria ótimo né? (Risos)

CB: Isso! Ganhar jovens com boas ideias para a reportagem. Por que eles me mandam muitos e muitos trabalhos, muitos vídeos, mas tem ali o jornalista de opinião, não tem o repórter. De cada 100 vídeos que eu recebo, seguramente 99 é jornalista de opinião e eles querem participar de um programa de reportagem. Eu explico ‘olha, não é bem assim’. Uma entrevista ou uma opinião você dá em cinco minutos, uma reportagem talvez você demore cinco meses para falar a mesma coisa! Você tem que provar que cada palavra dita é verdadeira… isso é reportagem! Opinião é opinião, você não precisa provar nada. Mas não fique aí passando para as pessoas como se fosse verdade a sua opinião, a verdade é outra coisa. É legal que a opinião seja formada por um conjunto de verdades, mas quem descobre a verdade é o repórter.

 

RA: Nunca imaginaríamos passar um período tão difícil como este cenário de pandemia. Como você avalia a atuação da imprensa tradicional na cobertura dos fatos da Covid-19?

CB: Depende do veículo. Eu acompanho bastante o The New York Times, a BBC, a TV Globo, Folha de São Paulo, o Estadão, alguns da concorrência também. Eu acho que aqueles que estão preocupados em retratar aquilo que a ciência tem mostrado, de um modo geral estão fazendo um bom trabalho. É um trabalho que ajuda a sociedade a decidir o seu destino, sempre a nossa função é essa, não é? A gente não deve pensar diferente disso. Eu trabalho noite e dia para oferecer informação para as pessoas que, a partir dessa informação toma suas decisões. Mas infelizmente tem governantes que fazem o papel contrário, que não respeitam a ciência, que não respeitam o conhecimento que é predominante, não só no Brasil, mas no mundo inteiro. Isso causou uma dificuldade, porque a imprensa tem o dever de dar a informação de todas as fontes possíveis e não pode ignorar as informações que são produzidas pelos governantes. Eu acho que ela cumpre o seu papel também ao divulgar os governantes não comprometidos com a saúde pública. Eu acho que é um desafio complicado quando você tem pessoas que não estão preocupadas em orientar a sociedade a se cuidar melhor. A própria pandemia me colocou, pela primeira vez na vida, dentro de casa. Eu trabalho desde 1973 e nunca tinha ficado um dia longe das ruas; eu estou confinado, e meus colegas também. Mesmo aqueles que estão liberados a ir para a rua estão com muita limitação. Não podem nem entrar na casa das pessoas; isso para a gente é muito grave, falo das diferenças de um repórter. Para o colega que trabalha com opinião nada é diferente, ele sempre ficou dentro de casa, nos hotéis, nas faculdades, na academia. Para o repórter é que foi dramático. A pandemia é inimiga da reportagem mesmo… embora a reportagem seja importantíssima para mostrar o que está acontecendo na pandemia, mas mostrar à distância é muito difícil. Eu tenho transformado vários médicos pedindo muito para eles virarem nossos repórteres, colocando uma câmera na testa mostrando o trabalho, médicos, enfermeiros, o pessoal que está no front. Os nossos repórteres se aproximam, mas não tanto. Sem falar no pessoal da educação que também está com aulas a distância, é uma transformação muito grande, um desafio imenso. A pandemia veio também para mostrar, dando um choque na nossa cara, mostrando o tamanho da desigualdade. Os ricos trouxeram a pandemia para o Brasil, mas rapidinho ela foi para as favelas, para o universo da maioria. Hoje aqui em São Paulo, de cada 10, 8 sempre são as pessoas mais vulneráveis. A pandemia mostra o quanto a desigualdade é cruel. Eu tenho dados de um hospital de periferia que as mortes estavam em torno de 70%. Agora você imagine entrar no hospital sabendo que as suas chances de viver é de apenas 30%; de cada 10, você olha para o lado e 7 pessoas não irão sair dali. Indo para os hospitais da elite, o número é outro.

 

RA: Aqui na UniFTC trabalhamos o conceito de profissional do futuro, do interprofissionalismo. Orientamos  e estimulamos os nossos estudantes a desenvolver habilidades e competências que serão fundamentais para ter o diferencial exigido pelo mercado. Na sua opinião, quais são os requisitos necessários para ser um profissional do futuro na Comunicação?

CB: Eu volto à questão que eu falei no começo: o propósito. Qual é a sua? Qual é a minha? Qual é a sua cara (como dizia Cazuza)? O que é que você pretende nessa profissão? Respondendo essas perguntas com firmeza, tendo isto bastante claro, já é uma grande coisa. Você pode usar as ferramentas profissionais para a construção de uma sociedade mais bacana que a nossa, essa clareza que eu acho que é importante… saber: de que lado eu estou? Que núcleo eu pertenço? Se eu pertenço a uma sociedade tão dividida, de classes sociais tão divididas, é muito fácil você saber que núcleo você pertence. Você está dentro do universo de 1%,2%, 5% ou de 80%? Considerando essa desigualdade brutal entre a minoria e a maioria, é importante você ter isso muito claro, muito bem definido, para a partir disso poder traçar a sua trajetória. Sintetizando eu diria duas palavras: Consciência política. Todo ato do ser humano é político. Qual o ato político mais radical? É o silêncio. Você calado não me dá oportunidade de saber o que pensa e nem me dá a oportunidade de transformar o que você pensa; nem sequer você deixa de ser egoísta não me oferecendo as informações para que eu melhore a minha vida. Esse silêncio é a forma mais radical, essa omissão é a forma mais radical. A quem diga: ‘ah não, eu sou apolítico, eu não opino, não participo!’; essa pessoa não é apolítica, ela é política e radical, é extremista, só para dar um exemplo. Qualquer movimento que a gente faça é um ato político. Eu defendo e acho legal para qualquer profissão, você ter uma sociedade politicamente organizada. Não adianta você ter a sua postura silenciosa, ou falante, cheia de opinião, e individualizada. É importante que a sociedade seja politicamente organizada, o coletivo participe dos seus sonhos, que os sonhos sejam coletivos também. Mas talvez a minha visão seja deformada por considerar a desigualdade uma coisa muito grave, se você tivesse aqui um colega que pensa diferente do que eu penso, talvez ele vai te dizer exatamente o oposto. A gente não pode esquecer também que estamos vivendo em uma sociedade polarizada, para cada coisa que eu falo existem pessoas que falam completamente o contrário, suas diferenças estão colocadas ali.